quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sete vezes

Olha que demais esse texto. A história de um cozinheiro e seu amor não correspondido. Escrito por meu pai, Mauricio Vasconcellos

Sete Vezes
Por Mauricio Vasconcellos

Desligo o despertador! Sete horas... Verão intenso.
E o despertador, como eu, parece correr de seus pesadelos.
Água, escova, sete esquinas e condução:
– Manjericão, salsinha, pimentão, alho, cebolas, peixes... O que mais?
Condução, ruas esguias, trabalho.
Nada valeria a pena sem ela... E ela bem sabe... Deve saber!
Corto as cebolinhas por sete vezes. Corto os pimentões... Uma, duas...
Como ela estará vestida hoje?
Três, quatro... Hum, pelo tempo que está fazendo... Acho que com aquele vestido verde musgo.
Cinco, seis, sete!
Adoro ela de vestido... Sempre. Quando estiver comigo, não vai usar outra roupa!
Ou vestido, ou nada... Até no inverno.
O verde realça seus cabelos...
Cinco, seis, sete...
Ruivos, como  todas as minhas noites...
Descama, picota, ferve...
O peixe e meu coração... Sempre.
Seis, sete...
O salão ainda está vazio... Será que escolherá a mesa sete?
Dá pra ver um pouco aqui da cozinha...
Quando a porta abre, quase que totalmente. Vai e vem... Ou pela janelinha.
Mas só seus cachos... Que parecem ao molho madeira...
Temperos. Panelas. Calor... Ninguém merece.
Ela merece. Faço tudo no capricho. O que será que ela vai escolher hoje?
Se fosse um restaurante a la carte, dedicaria-me somente ao seu prato...
Mas esta espelunca... por quilo... comercial barato...
Se dá muito bem quem come aqui. Todos os pratos bem feitos, porque feitos para ela são.
Qualquer um, qualquer um fica especial. Sou são... Sou especial.
Sete misturas no balcão...
Sete saladas...
Sete sobremesas...
Tem que ter... Até parece outono.
Ela finalmente chegou, com as amigas de sempre.
Vestido verde, eu sabia... Eu a conheço... Ela bem sabe...
Ai, queimei a mão. Merda! Mas vale a pena.
Ela não me conhece, quero dizer... Quero saber...
Ela me conhece!
Pelos meus pratos, meus temperos: ponho minha vida ali.
Um pouco de mim, um pouco de lágrimas também, uma pitada de meus sonhos.
Sete pitadas...
Uma piada de vida, a minha. Um inferno ruivo...
Inverno.
Uma vez, uma vez ela me olhou bem. Eu saindo do restaurante, ela na calçada...
Animada como sempre. Correndo.
Meio que fui pra direita. Ela também foi... Voltei rápido. Ela também.
Quase nos chocamos, quase.
Ela meio que correndo, com um cara ao lado...
Olhou-me bem. Eu acredito. E passou rápido...
Sete passos.
Olho para trás: tem um homem.
Ela parecia feliz. O cara também. Rápido e feliz... Olhei bem.
Hoje o despertador nem sonhou.
Ela também...
Hoje chegou mais tarde. Não entendi.
Sem as amigas de sempre... Como assim?
Com o cara da calçada: sem pressa.
Um, dois, três...
Quem pagou foi...
Mas ela sempre pagou suas contas!
Uma assinatura redonda e perfeita, como minhas cenouras.
Fui confirmar: um American Express, em nome de A. de al...
Não pude ver direito. Essa vaca que fica no caixa, que não entende de nada!
Nem de caixa, nem de cozinha, nem dos corações apaixonados como os nossos...
Eu fico na cozinha... Ok. Mas se eu fico, fico nervoso...
Quatro, cinco...
Ela não faz idéia de todas as minhas estações...
Ainda dá pra ver os dois no café... Porta vai, porta vem.
Ela vai olhar prá cá a qualquer instante. Com certeza.
Temperos, aromas, meu olhar, meu cheiro...
Essa paixão toda que nos liga.
Mas... Parece,... Parece que segue direto pela porta da frente.
Me queimo. Nem sinto a queimadura. Sinto algo conhecido. Sinto aquela dor, de novo.
Quatro, cinco, seis...
Agora corto meu dedo. Provo de meu tempero.
Raramente cortei o dedo. Apenas uma vez...
Fico entorpecido... Fico meio assim. Já fiquei assim, muito.
Uma estação que, em banho-maria, esperando... Não tem porque queimar...
Vou dar outra chance. Vou dar tempo ao tempo. Às estações e aos sinais...
Um, dois, três... Sete dias.
Aquela pele branca, empanada de farinha e calma, merece.
Merece alguém que saiba valorizá-la. Empaná-la.
De farinha e ódio...
Deus me escolheu. Escolheu alguém que a selecionou, dentre outras, dentre tantas. Uma especial, olhos brilhantes.
Como se escolhe o pescado... Deus era pescador.
Ela me escolheu, eu a escolhi...
Ela sabe. Ela nem sabe do que sou capaz. Sou capaz de coisas lindas. De escolher, tratar, de preparar.
Sou capaz também de esperar, cortar.
Uma , duas, três...
Linear, certinho. Alvo e rubro.
Não quero lembrar. Não quero fazer de novo.
Banho-maria... Assim, isso!
Lembro de quando fugi. De quando escolhi a outra. E ela não soube reconhecer em mim seu homem...
Ver em mim tudo o que sou...
Fui rápido e certeiro. Ninguém viu. Deus viu e me perdoou. Afinal, ninguém me pegou.
Perdi o ponto. Passou do ponto. O ponto é muito importante.
Só se sabe, ninguém te ensina...
Sete estados, sete cidades. Deus me guiou!
Sétimo dia... É hoje!
Despertador na mala, já calado, já prevendo.
Sem medo, sem sustos, sem sonhos.
Água, escova, sete ruas e condução.
Manjericão, nossa senhora, pimentão, alho, Deus pescador, tainhas... O que mais?
A mala de viagem. O dinheiro guardado para nós dois. Por nós, por Deus.
Aquela dor...
Corto os tomates em rodelas: uma, duas.
Rabanetes. E arroz branco.
Muito arroz: a felicidade, a paz, o branco. Nossa igreja!
E os tomates junto com os pimentões vermelhos...
Pudim de coco e morangos. Hummm.
Não dá liga. Branco e sangue...
Um cenário, um altar, um sacrifício. Como eu sofri...
Sete minutos para o meio dia!
Agora sim... Tudo perfeito!
Ela chega de aliança quase que amarrada... E sonhos errados, diversos, difusos.
Ele ao lado, nas mãos dadas... Mas nem assim fazem um casal.
Sequer um par. Um prato frio. Um misto frio, vá lá. Com os dias contados.
Juntos, mas nunca unidos. Não por Deus, nem por mim...
Faz frio na cozinha. Parece cair uma neve branca sobre o fogão sempre em chamas.
A porta vai e vem.
Eles vão juntos ao banheiro. Ele direita. Ela esquerda.
A porta vem. E quando vai... vamos juntos...
Reto e à esquerda...
Zíper fechando. Zummmm...
Lâmina tinindo. Zunindo. Ziiiip...
Dois, três...
A voz calada. O grito saindo pelo corte. Antes das cordas vocais: eu sei fazer...
Quatro, cinco...
Um dedo e uma aliança!
Atravesso de lado e vejo as travessas ainda intactas no balcão...
O alvo e o rubro.
A mulher sempre demora mais no toilette. Intacta.
A louça branca, e a pele. E o vermelho. Agora em demasia...
Em tudo....Ela foi tudo pra mim... Mas acabou.
Perdi o ponto e o molho.
– Pode ser madeira?
Cinco, seis.
Outro dedo e a aliança. No sete, corto e guardo também uma mecha de seus cabelos.
Porta dos fundos.
Uma, duas esquinas rápidas, como a sirene que escuto ao longe.
A estação de ônibus me espera fria. Como frio ficou o balcão de hoje.
Nem PF devem ter servido...
As quatro estações do ano também. Se fossem sete, seriam mais justas...
Deus é justo! As estações, podem ser...
Primavera, verão, outono, loura, ruiva, temperada, ao ponto.
Como vai querer?
Uma morena deve ser uma estação. Uma cidade.
A próxima? Sempre a seguinte.
Deus sabe qual me indicar. Vem chegando o verão.
Ele me escolheu. A morena também. Ele vai escolher...
Ônibus para o norte. Sete horas. Sete dias.
O despertador toca alto agora, dentro da mala...
– Motorista! Pare no próximo restaurante de estrada, por favor...
Obrigado senhor, por parar... Obrigado, Senhor, por me avisar.
Desligo o despertador.

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